Quando recebi a missão de escrever sobre serigrafia logo emergiu, das profundezas da minha memória, uma atividade na escola, quando ainda era criança, que era estampar uma camiseta. Eu não lembro se a peça era para gente mesmo ou se era para alguma comemoração especial tipo “Dia das Mães”, mas utilizamos um estêncil em formato de lagarta que protegeria a área determinada de modo que pudéssemos aplicar a tinta com uma escova de dentes para pintar as cerdas. Não era só uma lagarta, era uma taturana e no fim até ficou fofa.

De gosto duvidoso ou não, posso considerar este como meu primeiro contato com a serigrafia. Essa é uma técnica que surgiu na China e, na época, consistia justamente em utilizar um estêncil, ou máscara, para proteger as áreas que não receberiam a tinta. Ela também foi utilizada no Japão, onde fios de cabelos funcionavam como as pontes entre as máscaras. A técnica evoluiu e, devido a sua versatilidade (podia ser aplicada nas mais diversas superfícies e objetos) e baixo custo, foi muito utilizada na indústria e comércio. Foi nos anos 1930 que o norte-americano Anthony Valonis cunhou o termo serigrafia para fazer a distinção entre o até então uso geral e inaugurar seu uso artístico. Vista como técnica menor, a serigrafia só viria a se consolidar como arte nos anos 1960 com a Pop Art. Como nos conta Michael Archer [1] “A Pop Art surgiu e foi reconhecida como movimento nos EUA bem no começo da década de 60. Em 1962, era possível identificar uma sensibilidade comum em vários artistas, principalmente Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Claes Oldenburg, Tom Wesselman e James Rosenquist, todos cujas obras utilizavam temas extraídos da banalidade dos Estados Unidos urbano” (ARCHER, 2008, p. 6).

Crying Girl, 1963 – © Roy Lichtenstein – Offset lithograph on lightweight, off-white wove paper

Love, 1967 – Robert Indiana – © 2021 Morgan Art Foundation Ltd. / Artists Rights Society (ARS), New York – Screenprint

Foi em 1962 que Andy Warhol apresentou, na sua 1ª exposição na Ferus Gallery (Los Angeles), as 32 telas com as famosas pinturas da sopa Campbell apoiadas em prateleiras, esta é considerada a primeira exposição de Pop Art. Depois o artista adotaria o uso da serigrafia: “A razão para eu pintar desse jeito é que eu quero ser uma máquina, e eu sinto que seja lá o que for que eu faça eu faço e fazer como uma máquina é o que eu quero” – Andy Warhol. Essa exposição viria a inspirar uma artista pop pouco convencional: Sister Mary Corita Kent, freira, artista e professora de artes.

Installation view, Ferus Gallery, Los Angeles, 1962, with Campbell’s Soup Cans. Photograph: Seymour Rosen. © SPACES—Saving and Preserving Arts and Cultural Environments

Stop the bombing, 1967 – © Corita Kent – Serigraph

Em 2010 aconteceu na Estação Pinacoteca, em São Paulo, a exposição Mr. America que contou com 170 obras (26 pinturas, 58 gravuras, 39 trabalhos fotográficos, duas instalações e 44 filmes) de Andy Warhol. Além das obras, foram apresentadas algumas citações do artista, também conhecido por sua acidez e ironia. Ele sempre fez questão de dizer que suas obras não tinham significado para além daquilo que era representado e queria permanecer um mistério: “If you want to know all about Andy Warhol, just look at the surface of my paintings and films and me, and there I am. There’s nothing behind it. (Se você quiser saber sobre Andy Warhol, apenas olhe para a superfície das minhas pinturas e filmes e eu, e aí eu estou. Não há nada por trás disso)”.

Mas sabemos que não é bem assim. Quando percorri os corredores da exposição a crítica social, por mais negada que fosse pelo criador, estava – entre Marilyns, Edies, Campbells e Jackies – em plena vista. É importante reforçar que, no momento da concepção dessas obras, os países desenvolvidos viviam o chamado “30 anos gloriosos” (1945-1975), que foi um período de grande desenvolvimento econômico que sucedeu a 2ª Guerra. Estado de bem-estar social, crescimento demográfico, investimento em produção, pleno emprego, altos salários e consumo. Junte o crescimento da indústria cultural e teremos toda a matéria-prima da Pop Art, uma arte que, a partir de então, se assumiu como mercadoria. Não por acaso o estúdio de Warhol se chamava “Factory” e a técnica adotada para criar suas obras foi a serigrafia.

Fonte: Pinacoteca de SP

Aqui vale a pena resgatar um trecho da Annateresa Fabris [2]. No capítulo três do livro “Identidades Virtuais”, a autora nos apresenta algumas reflexões de Jean Baudrillard sobre o retrato fotográfico e nos informa que:

“As reflexões de Baudrillard integram um universo cultural alicerçado na urgência de ser visto, de ser ‘plebiscitado pelo olhar’, de ser fotografado. O emblema máximo desse universo – no qual a noção de celebridade é maquinal e fotogênica – é Andy Warhol, definido sucessivamente pelo autor como holograma, presença virtual e objetiva fotográfica. Por que objetiva fotográfica? Porque em Warhol tudo é fictício. O objeto, dissociado do sujeito e relativo ‘apenas ao desejo único do objeto’. A imagem, destituída de qualquer significação própria, de qualquer exigência estética e relativa ‘ao desejo único da imagem’. O real, exterminado pela supervalorização da imagem, que desafia a própria noção de arte e estética” (FABRIS, 2004, p.76).

Andy Warhol consolida a serigrafia – que até então era vista com maus olhos justamente por seu uso industrial e/ou comercial – como arte utilizando o mesmo mecanismo (ou magia) da Pop Art: deslocamento. Retira os produtos do cotidiano da sua banalidade e atribui-lhes status de arte. Produção seriada e, talvez o mais importante, inteligível para as massas, nenhuma escolha é aleatória. Warhol não estava errado, uma pintura da lata de sopa Campbell é só a pintura da lata de sopa Campbell, não tem nada demais, mas é a sua aparente superficialidade que produz todo o significado.

“I am a deeply superficial person”

Andy Warhol

Referências Bibliográficas

[1] ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[2] FABRIS, Annateresa. Identidades Visuais: uma leitura do retrato fotográfico. BH: Ed. UFMG, 2004.