Nesta conversa conheceremos um pouco mais sobre o criador e sua criatura.

Daniel Melim é artista visual e arte-educador. Começou com intervenções urbanas na sua cidade natal (São Bernardo do Campo) e das ruas trouxe, além do estêncil, muita crítica e reflexões para suas produções. Com muitas referências da arte urbana, arte pop e HQ’s ele consegue transmitir várias inquietações do nosso modo de vida atual. Seja nas telas, nas empenas cegas, nos muros ou em suas gravuras, sempre há um enigma a ser decifrado e não seria diferente com a sua nova gravura “Autoimagem”. Confira abaixo o bate-papo com o artista.

GC: Daniel, é fácil perceber que você é um artista nato da gravura, ela sempre está presente na sua produção ainda que a pintura seja a protagonista. Você pode explicar melhor a presença da gravura dentro da sua linguagem artística? Qual o impacto que ela tem?

D: A minha pesquisa tem uma relação muito próxima com a impressão e também com a falha (borrão, erro, distorção, etc), com isso a minha aproximação com a gravura é algo que cria uma relação com a linguagem, mas com a pesquisa e desenvolvimento técnico também. Assim a gravura não é só um meio, mas uma fonte de pesquisa para o meu trabalho.

Autoimagem, 2021 – Daniel Melim – Serigrafia

GC: A referência da Arte Pop é bastante presente na sua produção, conte-nos um pouco sobre a sua relação com a Arte Pop.

D: Minha relação com a Arte Pop vem principalmente do estêncil (técnica que desenvolvi a partir da minha experiência com o graffiti e arte urbana). Essa técnica é a base da minha pesquisa e foi através dela que compreendi melhor a Arte Pop e seus signos, sua subversão e estilo. Muito disso também vem da minha relação com as histórias em quadrinhos, que são uma referência direta no meu trabalho. Sempre gostei de HQ, antes mesmo de pensar em ser artista visual, eu desenhava HQ’s de forma amadora, para fanzines. Foram basicamente o graffiti e as HQ’s que me levaram para a Arte Pop de forma natural.

GC: A gravura que será lançada chama-se “Autoimagem”, o que você pode nos contar sobre essa obra?

R: Essa gravura faz uma crítica ao padrão de beleza estereotipado, mas também de como nós, enquanto sociedade, nos enxergamos e observamos o próximo. A imagem no espelho, ela nos reflete?

GC: Fale um pouco sobre a figura feminina que aparece com frequência nos seus trabalhos e que também está presente em “Autoimagem”. O que ela representa dentro da sua obra?

R: As figuras femininas, que aparecem de maneira recorrente no meu trabalho, são imagens que crio, reconstruo ou me aproprio a partir dos clichês e figuras estereotipadas de beleza. Mas dou a elas uma dramaticidade pela expressão da imagem ou pela aplicação da mesma. Há nelas também uma crítica à vida cotidiana e de como criamos ou destruímos a nossa autoimagem a partir da sociedade de consumo. Por isso essa estética vai ao encontro dos signos da Arte Pop e também da subversão da figura, principalmente, da mulher na propaganda de massa. Muitas vezes elas contrastam traços e arquétipos de beleza, mas com expressões faciais que giram em torno dos anseios, preocupações e medos. O feminino toma um ar social e significado de transformação.

GC: Para escrever este texto e fazer esse bate-papo, por conta do lançamento, foi preciso pesquisar sobre serigrafia, Pop Art e Street Art e é sempre bom revisitar esses assuntos. Como já mencionado, a Arte Urbana pode ser resumida como arte para todos. Com esse atual bombardeio de imagens, em grande parte promovido pelas redes sociais e streamings, as pessoas estão cada vez mais com os olhos voltados para as telas, como você vê as intervenções urbanas nessa disputa por atenção?

D: Acredito que a arte urbana foi uma das primeiras a se apropriar dessa mídia e usá-la como ferramenta para divulgar seus trabalhos e trocar informações. Hoje há uma rede enorme de conteúdos que são baseados na ação e no espaço urbano. Criou-se um complemento para atingir ainda mais público. Mas são públicos diferentes. Nessa disputa a arte urbana criou um aspecto de ocupação da cidade. Seja pelo volume ou pela dimensão, como a explosão de grandes murais principalmente em SP.

Daniel Melim
Daniel Melim assinando a gravura Autoimagem

GC: Nessas investigações sobre arte urbana acabei virando amiga de Instagram da lenda viva da street art John Fekner. Em uma mensagem comentei com ele que é difícil ver que depois de tantos anos ainda vivemos em um mundo de “broken promises and decay” (falsas promessas e decadência), em referência direta às intervenções dele lá nos EUA nos anos 1970/80. Ele, supersimpático, falou que acompanha as notícias do Brasil e disse que a gente precisa continuar a fazer coisas boas. Qual o impacto que esse atual período obscuro teve (tem) na sua criação?

D: Tenho muita referência do Fekner em meu trabalho, principalmente pelo uso da tipografia. Ele é demais! Realmente me parece que voltamos há alguns anos, estamos discutindo assuntos que eu julgava já estarem superados, mas o óbvio ficou nebuloso. Dentro do meu trabalho temas sociais e políticos sempre foram recorrentes e mesmo que eu me sinta livre para simplesmente pintar, acho que o artista tem um papel social de transformação na sociedade e muitas vezes a minha contribuição é na ação de fato. Nesse período mais obscuro voltei a participar de forma mais ativa dos projetos sociais, ações diretas e grupos. Em algumas dessas ações eu contribuí com articulação e organização, mas também com cartazes das nossas demandas ou reivindicações. Acabei produzindo bastante ilustrações com isso, sempre de temas políticos ou sociais. Isso com certeza deixará algum impacto no meu trabalho, na minha pintura e, sem sombra de dúvida, na minha experiência.

GC: Daniel, eu vou insistir mais um pouco na “Autoimagem”. Quando pedimos para você falar um pouco sobre ela, você deixa uma questão, retórica é claro, mas que me fez pensar: A imagem no espelho, ela nos reflete? Quando vi sua gravura essa questão do espelho chamou muito a minha atenção, pensei isso é fantástico! Desde então venho refletindo sobre isso. Ao meditar sobre a influência que a arte pop tem na sua produção, recordei-me da exposição “Mr. America”, do Andy Warhol, na Estação Pinacoteca (2010). Uma daquelas várias frases do Warhol que colocaram como complemento dizia, mais ou menos, não lembro perfeitamente, que o sonho dele era olhar-se no espelho e não ver nada, porque as pessoas costumavam chamá-lo de espelho e, ele se questionava, quando colocamos um espelho na frente do outro o que vemos? Então podemos identificar alguns legados da sociedade de consumo e da indústria cultural, como os padrões, físicos e comportamentais, que são repetidos à exaustão pela mídia e que ganharam uma potência gigantesca com as redes sociais. Não são poucos os casos de pessoas, principalmente mulheres, que ficam deformadas ou até mesmo perdem suas vidas em busca de algo inalcançável. E ao mesmo tempo temos uma onda de campanhas de autoaceitação que buscam justamente desmascarar algo que já sabemos ser falso, e isso para mim é o mais problemático porque a questão do uso do photoshop e da manipulação de imagens, de maneira geral, é pública notória, mas as pessoas ficam nessa espécie de esquizofrenia, fraturadas entre busca e aceitação. Parece-me, só uma hipótese, que a questão não é tanto ser perfeito, mas justamente ter a imagem perfeita; e na gravura vemos: eu não preciso nem ter um rosto, mas meu reflexo é, ou precisa ser, impecável. Eu poderia ir mais longe, mas é melhor parar por aqui.

D: Eu encaro a arte como essa provocação. Levantar as questões a partir do sensível. Adorei ler essa sua visão e é perfeita. A questão era mais retórica, mas achei incrível essa sua devolutiva! Eu fico feliz em saber que são perceptíveis essas indagações na gravura. Muito obrigado!

A gravura Autoimagem, feita em serigrafia, será lançada no próximo dia 30, não percam o próximo post com todos os detalhes!

Para conhecer mais sobre o projeto clique aqui!

Daniel Melim
Daniel Melim em seu ateliê

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