A arte urbana está presente na produção do artista que lançará sua nova gravura no dia 30/11.

A veces en las tardes una cara

nos mira desde el fondo de un espejo;

el arte debe ser como ese espejo

que nos revela nuestra propria cara.

Jorge Luis Borges – Arte Poética – El Hacedor, 1960 [1]

Daniel Melim nasceu em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Artista visual, foi em uma pista de skate da cidade natal, ainda adolescente lá nos anos 1990, que seu interesse pela arte foi despertado, mas não a arte das manobras, mas a do estêncil. Começou a fazer intervenções urbanas, mas como um fruto não costuma cair longe da árvore, chegou a trabalhar alguns anos na fábrica – o ABC é uma região industrial –, mas para nossa felicidade Daniel tornou-se arte-educador, atividade que ainda desenvolve eventualmente, e posteriormente passou a dedicar-se exclusivamente à sua produção artística.

arte urbana
Sobre Nós, 2020 – Daniel Melim
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A, 2021 – Daniel Melim

A arte urbana engloba uma série de intervenções que acontecem nos espaços públicos. Graffiti, estêncil, cartazes, adesivos, projeções, instalações e performances são exemplos de manifestações artísticas que têm como palco a rua e como espectadores os seus habitantes. Muitas vezes irônica, rebelde e crítica a arte urbana sempre buscou, além do encantamento, trazer reflexões importantes sobre a sociedade e o estado das coisas, e ainda romper com a hegemonia do cubo branco. Como um espelho, a arte da rua tem essa capacidade de nos confrontar com a gente mesmo.

Barcelona, 2012 – Ana Paula Umeda
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Interatriz Julia Pascali, 2010 – Parque da Água Branca – Ana Paula Umeda

A obra de Melim insere-se no universo da Arte Urbana (Street Art). A Street Art pode ser resumida como arte para todos. Com muita ênfase no todos: desde os grandes centros das metrópoles até suas periferias, das empenas cegas de bairros mais abastados até as paredes decadentes de construções abandonadas. Seus espectadores estão sempre em movimento, seja no carro, moto, ônibus ou trem, seja com o passo apertado para não se atrasar ou parados num sinal vermelho, sua mensagem precisa ser direta. Mordaz e contestadora por natureza, a arte urbana encarna o espírito do tempo ao incorporar as características dos diferentes suportes onde é aplicada e ao utilizar a apropriação e o deslocamento de símbolos e imagens do cotidiano para provocar questionamentos e reflexão.

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Daniel Melim – arquivo do artista

Daniel traz para sua pintura o estêncil, camadas de informações e significados que são depositadas na tela de maneira meticulosa. Ruídos e resíduos, pedaços de textos e texturas em uma composição engenhosa que simula a rua e sua deterioração. Podemos enumerar algumas influências na obra de Daniel, desde o neodadaísta Robert Rauschenberg até a Pop Art de Roy Linchtenstein, passando por anúncios dos anos 1950 e desenhos de HQ vintage. Já da arte urbana, suas referências vão desde os artistas do estêncil no Brasil como: Celso Gitahy, Ozi, Jorge Tavares, passando por Herbet Banglione, Vitche, Tinho, que são de uma geração próxima à dele, até artistas estrangeiros da street art como Banksy, Jef Aerosol, Dave Kinsey e John Fekner. Melim encaixa todos esses elementos e evidencia o contraste acentuado entre o real e o ideal. À moda da esfinge, um enigma é lançado aos espectadores, mas em caso de fracasso quem irá devorá-los é o mundo.

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Sem título, 2020 – Daniel Melim
Jef Aerosol – Paris, 2012 – Ana Paula Umeda

E é exatamente isso que a sua nova gravura faz. Em “Autoimagem”, que será lançada no dia 30/11/21, temos uma figura feminina sem rosto que encara seu reflexo no espelho. Sonho ou pesadelo? E este é só o começo dos questionamentos que a obra nos faz. Como enxergar sem ao menos ter olhos, como reconhecemos nossa face sem ao menos ter um rosto. Seja nas telas, nas laterais dos prédios, nos muros ou em suas gravuras, sempre há uma charada que precisamos resolver. Feita em serigrafia, com muitas informações da arte pop e dos HQ’s, Melim nos intriga e surpreende com mais um mistério.

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Autoimagem, 2021 – Daniel Melim – Serigrafia

O que o espelho tem para nos falar? Refletir vem do latim reflecto: voltar para trás, dobrar. Reenviar, repercutir, reverberar. Podemos pensar sobre aquilo volta. Se toda a arte, como nos alertou Borges, deve funcionar como um espelho, quando andamos pela cidade o que os vários espelhos espalhados de arte urbana têm para nos revelar? Como já disse o colombiano Fernando Botero “A arte é um descanso espiritual, imaterial das durezas da vida” [2], partindo dessa ideia, a arte urbana surge como um oásis de cores e sensações para nos salvar do deserto dos grandes centros e para nos mostrar que, nesse labirinto de asfalto e concreto, sempre há uma saída.

Como advoga o pensador francês David Le Breton “Ficar em silêncio e caminhar são hoje em dia duas formas de resistência política” [3]. O caminhar retirado do utilitarismo de apenas ir à rua com algum objetivo concreto e o silêncio para termos momentos de contemplação e autoconhecimento. Livres da obrigação de estarmos sempre conectados e produtivos, caminhar em silêncio pela cidade contemplando cenários e paisagens, ao mesmo tempo tão familiares e tão estrangeiros, nos proporciona o descanso sugerido por Botero. O fotógrafo Daido Moriyama, há muito descobriu, com sua fotografia de rua, que “assim como os seres humanos, as cidades têm sonhos e memórias”[4]. Que histórias as cidades e sua arte nos contam?

Daniel não traz apenas as técnicas e referências da rua para seus trabalhos. Ele reproduz as suas histórias nos proporcionando a mesma inquietação. Em 2013 o Mural da Luz, na Av. Prestes Maia, feito por Melim foi eleito a obra mais representativa da cidade de São Paulo. Além dos trabalhos nas ruas, vem apresentando sua pintura – que se desenvolveu através das experiências do seu trabalho de intervenção urbana – em galerias e museus, no Brasil e no exterior – como Galeria Choque Cultural, Museu AfroBrasil, Memorial da América Latina, Bienal de Valência na Espanha, MASP e em outros espaços e instituições pelo mundo. Até o dia 31/10/21 foi possível visitar a exposição “Reconstrução” na Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre.

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Daniel Melim em seu ateliê – arquivo do artista
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Mural da Luz – Daniel Melim – arquivo do artista

Sua nova gravura “Autoimagem” será lançada no próximo dia 30, mas até lá continue a acompanhar nossas postagens sobre Melim e sua produção.

Notas:

[1] BORGES, Jorge Luis. Poesía Completa. Barcelona: Ed. Lumem, 2011, p. 150. “Às vezes nas tardes um rosto/nos encara do fundo de um espelho;/a arte deve ser como esse espelho/que nos revela nossa própria face” – tradução livre.

[2] FARTHING, Stephen. 501 Grandes Artistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2009, p. 499

[3] Site: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/572949-ficar-em-silencio-e-caminhar-sao-hoje-em-dia-duas-formas-de-resistencia-politica

[4] FARTHING, Stephen. 501 Grandes Artistas. Rio de Janeiro: Sextante, 2009, p. 531