A gravura em serigrafia é uma ótima opção para colecionadores

“Assim, enquanto nos concentramos no ser, é no não ser onde está a utilidade” – Lao Tse. O capítulo 11 do Tao Teh King nos ensina que, em muitos casos, é no vazio, na ausência, que reside todo o sentido: um vaso só é útil porque contém um espaço para ser preenchido. Assim também é o estêncil, e por extensão a serigrafia, é na ausência de tinta, determinada pelos espaços protegidos, que o desenho irá se revelar.

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Desenhos em estêncil nas cavernas de Leang Sakapao – Indonésia

Os primeiros desenhos em estêncil, que se tem notícia, foram encontrados nas cavernas de Leang Sakapao, que ficam na ilha Sulawesi, na Indonésia. Datações mais recentes apontam que as pinturas das mãos feitas por estêncil têm aproximadamente 40 mil anos, o que corrobora com a hipótese de que o chamado big bang cultural foi, na verdade, o aparecimento de várias fagulhas ao redor do mundo. O tema da ausência sempre me foi muito caro, não é de hoje que carimbo ele por aí.

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Foto: Ana Paula Umeda

Carimbo, repetição. Gravura é uma técnica artística que consiste em criar, a partir de uma matriz, várias cópias de uma mesma imagem. De maneira bem resumida, a matriz é entintada e a imagem é impressa no papel. Seu valor artístico está na sua produção totalmente artesanal e originalidade, cada cópia é única. As gravuras possuem tiragem limitada e são numeradas, assinadas e datadas pelo artista.

Além do prazer estético, a gravura representa um meio acessível de aquisição de obras originais de grandes artistas. As gravuras são classificadas de acordo com o material de sua matriz, como por exemplo: xilogravura (madeira), gravura em metal (placas de cobre, zinco, alumínio ou latão), litografia (pedra calcária) e serigrafia (tela de poliéster).

A serigrafia é um processo de impressão permeográfica. Ela segue o princípio do estêncil: a tela de poliéster, esticada em um bastidor, recebe um tratamento fotoquímico que determinará as áreas impermeáveis e, nas demais áreas, a tinta atravessa a tela, com a ajuda de um rodo, e o papel é impresso. Cada cor requer uma tela, para isso são produzidos os fotolitos, um para cada cor, e a partir deles uma máscara é criada em cada tela.

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Produção da gravura Autoimagem de Daniel Melim – Editora de Gravura
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Produção da gravura Autoimagem de Daniel Melim – Editora de Gravura

Uma emulsão fotossensível é aplicada na superfície de poliéster, uma vez seca, coloca-se o fotolito sobre a tela e o conjunto é levado até uma mesa de luz. As áreas escuras no fotolito bloqueiam a luz, nessas áreas a tinta atravessará. As áreas que recebem luz ficam impermeáveis, são as áreas de vazio. É um procedimento análogo ao de ampliação de fotografias analógicas. O papel fotográfico (fotossensível) é posicionado no ampliador, o negativo é o fotolito, as áreas escuras bloqueiam a luz e o papel não é “queimado”, as áreas claras do negativo correspondem às áreas onde o papel é queimado. Na serigrafia, uma a uma as camadas de cores, entrecortadas por ausências, são depositadas sobre o papel e ao final temos uma gravura feita com essa técnica.

Mas nem sempre esse processo foi bem visto. A serigrafia é uma técnica bastante antiga e devido à sua versatilidade e baixo custo sempre esteve relacionada aos usos industriais/comerciais. Foi a partir do movimento da Arte Pop, com a adesão de Andy Warhol à técnica, que a serigrafia passou a ser vista como possibilidade também artística. Encarnando o espírito de seu tempo, Warhol e a sua Factory viraram máquinas de produzir arte.

E não é só a Arte Pop que tem a capacidade de trazer o estado das coisas para suas produções. A Arte Urbana, que pode ser descrita como arte para todos, com toda sua crítica e contestação também busca sintetizar as inquietações, muitas vezes se utilizando de elementos da própria Arte Pop, através de murais, graffiti, performances, intervenções e etc. Muitos artistas vieram das ruas para as galerias e trouxeram para suas obras além das técnicas muita reflexão e questionamentos.

Nesse contexto não podemos deixar de falar da importância do surgimento da galeria Choque Cultural. Baixo Ribeiro trabalhou muitos anos com moda e, mais especificamente, marcas voltadas para o público jovem. Foi a partir da convivência com esse público que ele conseguiu ver grande potencial com relação aos colecionáveis. Mais do que consumir esse pessoal queria ter um produto diferenciado e que pudesse proporcionar satisfação pela sua aquisição.

A partir dessa percepção ele e sua esposa, Mariana Pabst, montaram a Editora Choque Cultural que começou com a produção de artigos colecionáveis de artistas urbanos como prints, livros de artista, adesivos e afins. Seguindo um caminho natural o casal de arquitetos e artistas se juntou ao historiador e também artista Eduardo Saretta (Coletivo SHN) e fundaram, em 2004, a galeria Choque Cultural.

A Choque transformou-se numa das principais referências globais em arte urbana e novas linguagens contemporâneas, apresentando jovens artistas ao lado de nomes já consagrados e internacionais. O programa de exposições é focado na apresentação integral de artistas e coletivos, ou seja, nas mídias diversas que compõem suas obras, através de exposições indoor, nas ruas ou virtuais. Além das exposições, a Choque investe em intercâmbios, residências, intervenções urbanas, colaborações, imersões e outras experiências multidisciplinares. Sob o guarda-chuva da galeria, a Choque e seus artistas realizam projetos de arte no espaço urbano, em espaços não convencionais de arte e em instituições museológicas tradicionais.

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Fachada da galeria Choque Cultural – imagem do site

Com o formato da editora Choque voltado para a street art consolidado, foi a hora de introduzir a produção de gravuras em serigrafia na história. Com a captação de artistas da arte urbana – hoje nomes consagrados como Speto, Jaca, Daniel Melim, Ramon Martins, Tara Mcpherson e etc. – e o treinamento de serígrafos, como o Kana da A7MA galeria, a produção de serigrafias tornou-se um elemento fundamental da cultura da street art e passou a fazer parte do portfólio dos artistas com lançamentos periódicos de novas estampas.

Cristiano Kana, da A7MA, possui know-how em técnicas de reprodução artesanal com um curriculum onde nomes importantes como Jeremy Fish, Sesper, Flip, Walter Nomura Tinho, Speto, Herbert Baglione, Nunca, Vitché, Titi Freak, Flávio Samelo, Zezão, Stephan, Billy Argel, Hornest, dentre muitos outros, já tiveram suas obras reproduzidas. Os trabalhos de serigrafia desenvolvidos em seu ateliê estiveram presentes em algumas das melhores Galerias de São Paulo, o que possibilitou o acesso do jovem colecionador ter contato com o artista que ele tem identificação. Em 2003, junto com o irmão Alexandre, iniciaram, em parceria com Baixo Ribeiro, as edições de gravuras limitadas, numeradas e assinadas por artistas de referência na arte urbana, onde, ao longo dos anos, conquistaram reconhecimento no Brasil e no mundo.

O Estúdio Elástico, especializado em serigrafia, foi criado em 2008 pelo artista e designer Rogério Maciel. Desde o início o estúdio tem trabalhado com cuidado e atenção aos detalhes na edição de múltiplos bem adaptados à serigrafia, além de potencializar a criatividade no uso da técnica ministrando cursos, dentro e fora do EElástico. Eles possuem uma loja online onde é feita a publicação e valorização da diversidade da produção independente, principalmente de artistas brasileiros. As operações, da administração ao envio, são feitas e/ou supervisionadas pelo próprio Rogério.

A Editora de Gravura, comandada por Wilton Pedroso, é um estúdio especializado em edições de arte de pequena tiragem. São produzidas edições artísticas de obras em papel nas técnicas de fine art e serigrafia. A produção é artesanal e de tiragem limitada. Os papéis utilizados nas edições são de alta qualidade e com longevidade superior a 200 anos. No dia 30/11/21 o artista Daniel Melim lançará sua nova gravura Autoimagem, feita em serigrafia pela Editora de Gravura.

Daniel Melim
O artista Daniel Melim e sua nova gravura Autoimagem

O colecionismo possui uma faceta econômica, mas para além das questões que envolvem valores, o colecionismo requer identificação. Walter Benjamin, em seu texto “O Colecionador” [1], nos diz que “Talvez o motivo mais recôndito do colecionador possa ser circunscrito da seguinte forma: ele empreende a luta contra a dispersão. O grande colecionador é tocado bem na origem pela confusão, pela dispersão em que se encontram as coisas no mundo. […] O colecionador, ao contrário (do alegorista), reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo, informar a respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo” (p. 245).

Colecionar tem a ver com preservação de memórias, não apenas a nossa, mas do mundo como um todo. Uma coleção conta muitas histórias. Cada obra nos traz uma mensagem. A Arte Urbana, com sua capacidade inata de capturar o espírito do tempo, tem o poder de congregar críticas, inquietações, questionamentos e fatos que nos golpeiam diariamente. Com sua grande variedade de formas e linguagens é quase impossível não encontrar um trabalho com o qual possamos nos identificar. Montamos nosso acervo, ao mesmo tempo particular e universal, intercalamos imagens, ruídos, silêncios e vazios e de ausência em ausência o conjunto toma forma e demonstra toda sua potência como um grande inventário da vida.

Referências bibliográficas:

[1] BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2009.