O espaço urbano e a convergência público e privado

Perscrutar a cidade. Desde os graffitis nos muros e paredes até os malabaristas dos semáforos, a arte urbana – a arte para todos – nos acompanha por nossos caminhos. Movimento, melodias, ruídos, cores e mensagens que disputam nossa atenção em meio ao corre-corre de cada dia. Mas nem sempre estamos com pressa. Nos momentos mais descontraídos podemos nos deixar levar pelas caligrafias, ícones ou símbolos – como uma espécie de hieróglifos contemporâneos – que esperam, pacientemente, ou não, serem decifrados. São nesses momentos de contemplação que a cidade se mostra como um lugar de infinitas possibilidades.

Congregar a cidade. Subvertendo a máxima que nos diz que “o que é de todos não é de ninguém”, os coletivos de arte surgem como contraponto e procuram resgatar a importância da comunidade. Como um grande caldo onde os egos são dissolvidos, cada ingrediente é único e indispensável para que a obra seja concretizada a contento. Provando que o todo pode e deve ser maior que a soma das partes, os coletivos de arte urbana – com a utilização de muita crítica, ironia e /ou humor – fazem as suas intervenções pelas ruas e conclamam a sociedade a (re)pensar.

Coletivo SHN
Pintura torre de contêineres simulando combo de adesivos – Largo da Batata/SP – imagem do site

Mapear a cidade. O Coletivo SHN foi formado em 1998, em Americana/SP. Influenciados pelo legado punk “faça você mesmo” e multidisciplinar, o grupo reúne artistas com atuações diversas como artes gráficas, arquitetura, vídeo e grandes pinturas. A serigrafia foi o ponto de partida gráfico para a pesquisa de mídias apresentada pelo coletivo, que trabalha com ícones universais, (re)significando o conceito de logotipo e marca em uma abordagem bem-humorada e crítica. A utilização de traços largos, cores chapadas e apropriação e transformação de imagens, assim como a transposição para diversas mídias, atravessam a discussão proposta pelo coletivo.

Coletivo SHN
A exposição “17 ODS para um Mundo Melhor” ocupou o Memorial da América Latina de 22 de maio a 21 de julho 2019 com objetivo de gerar interesse, reflexão e entusiasmo na população em prol de um mundo mais sustentável acerca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU. O coletivo SHN assinou o Objetivo 17, realizando uma releitura dos símbolos de cada ODS e aplicando no globo simulando um combo de stickers. Imagem do site.

Simplificação e repetição: por meio de serigrafias, lambes, adesivos e/ou graffiti o universal e o particular se confundem e se complementam por meio da reprodução de imagens que podem ser facilmente identificadas em qualquer lugar do globo e permitem as mais peculiares leituras. É quase impossível olhar para uma das serigrafias de copo americano ou da boca do SHN e não nos lembrarmos imediatamente de Arte Pop. Como nos conta Michael Archer [1] “a Pop Art surgiu e foi reconhecida como movimento nos EUA bem no começo da década de 60. Em 1962, era possível identificar uma sensibilidade comum em vários artistas, principalmente Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Claes Oldenburg, Tom Wesselman e James Rosenquist, todos cujas obras utilizavam temas extraídos da banalidade dos Estados Unidos urbano” (ARCHER, 2008, p. 6).

Andy Warhol encontrou na serigrafia a possibilidade de produzir suas obras como uma máquina e foi a partir dele que essa técnica, até então preterida – justamente por conta da sua utilização industrial/comercial –, consolidou-se como arte e passou a povoar o imaginário das pessoas.

Coletivo SHN
Copo Vermelho, serigrafia – Galeria de Gravura
Coletivo SHN
Boca, serigrafia – Galeria de Gravura

Reivindicar a cidade. A cidade é esse espaço de encontro entre o público e o privado. Enquanto indivíduos somos instados a ajustar nossas identidades em nome da convivência com o outro. A identidade, ao contrário do que podemos pensar, é fluida e elaborável, como nos diz Le Breton [2] “O indivíduo é sempre um processo” (LE BRETON, 2018, p. 200). Assim também é a cidade, apesar do seu aspecto estático, com suas construções pesadas e muitas vezes sisudas, é o movimento e a mudança que sobressaem-se e as intervenções proporcionadas pelas artes urbanas, em todas as suas formas, têm um papel fundamental nesse processo.

Gosto muito de uma frase do fotógrafo japonês Daido Moriyama que diz que “assim como os seres humanos, as cidades têm sonhos e memórias”. Assim, universal-particular | efêmero-impactante convivem e se misturam nas criações do SHN e alteram as narrativas tanto do território quanto das pessoas. Palimpsestos de pinturas, cartazes e stickers que sobrepõem-se e se retroalimentam em um movimento contínuo que é, ao mesmo tempo, de/para todos <=> para/de um. Das várias mensagens possíveis, o grupo, é bom reforçar, também vem lembrar-nos de que o todo é mesmo maior que a soma das partes.

Referências Bibliográficas:

[1] ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[2] LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis/RJ: Vozes, 2018.