No centro do Rio de Janeiro, a imagem de quatro caboclos amazônidas ocupa a fachada do Centro Cultural Banco do Brasil, um dos mais importantes espaços destinados às artes do país. Nada mal para quem há não muito tempo estampava, com adjetivos nada lisonjeiros, as páginas ainda menos nobres dos cadernos policiais de Belém. Os olhares – desafiadores, constrangidos, assustados, indiferentes – continuam os mesmos, mas é improvável que as personagens mestiças, esturricadas pelo sol e pelo estigma, tenham a chance de reconhecer, no trabalho do conterrâneo Éder Oliveira, a própria imagem da exclusão, agora refletida em tons verdes, vermelhos, amarelos e azuis.

A obra, que integrou a mostra “Amazônia, Ciclos de Modernidade”, promovida pelo CCBB na capital carioca e em Brasília no primeiro semestre do ano passado, é uma espécie de síntese do pensamento artístico de Éder, ele próprio um mestiço nascido e criado na região bragantina do estado, que em um par de anos construiu uma trajetória calcada na mescla entre pintura, fotografia, sensibilidade social, intervenção urbana e daltonismo. De figuras anônimas, relegadas habitualmente às áreas pouco ou nada visíveis do tapete social, nasce um processo de ressignificação que realoca e joga na cara de transeuntes desavisados a incômoda questão: existe um papel para este homem de ralas nuances cromáticas que não os de criminoso ou vítima?

Para entender o caminho percorrido pelo artista, no entanto, é preciso voltar um pouco no tempo. Mais precisamente à Nova Timboteua da segunda metade dos anos 1980: um vilarejo do nordeste paraense com menos de 10 mil habitantes e forte ligação com o consumo, estilo de vida e maneirismos cultivados na periferia de Belém. Descendente de índios e negros, filho de professor primário e dona de casa, Éder cresceu cercado pela realidade que, tempos depois, o ajudaria a refletir sobre o espaço reservado pela arte ao homem comum da Amazônia, assim como à identidade cultural deste. No quadrado Casa-Escola-Igarapé-Televisão foi gestado o embrião da veia artística que, mesmo que sem muita consciência, era latente desde a infância.

“Em Timboteua eu era o ‘cara que desenhava’. Fazia os desenhos dos trabalhos escolares, reproduzia as imagens para os trabalhadores nos muros, tinha referências dos heróis da televisão. Era uma vida calcada na relação homem-natureza e baseada culturalmente no que a televisão me oferecia. Nem banca de revista nós tínhamos naquela época”, lembra Éder, que levou em conta o talento para o traço e os elogios de amigos e parentes quando, aos 17 anos, deixou a cidade para completar os estudos na capital. A escolha era óbvia, e no curso de Educação Artística da Universidade Federal do Pará o timboteuense experimentou pela primeira vez o estranhamento, inicialmente causado pela diferença cultural em relação aos colegas de graduação.

“Quando entrei na faculdade precisei correr atrás de muitas informações que simplesmente não tinha. Levei um tempo para me situar na História da Arte, por exemplo. O próprio hábito da leitura eu adquiri já na faculdade, para suprir estas lacunas.” E quando algum tempo depois o estudante finalmente desenvolveu a confiança necessária para perceber – pela admiração instantânea por mestres como Caravaggio, Michelangelo e Leonardo Da Vinci – que a inclinação para o desenho poderia ser convertida para a pintura, veio o segundo e mais forte baque: a descoberta do daltonismo. “Passei a vida toda errando cores e quando adotei a pintura errava mais ainda. As pessoas perguntavam ‘Por que essa mancha vermelha aqui?’ E eu simplesmente não enxergava. Foi um choque pensar que não poderia me dedicar ao que queria por conta de uma deficiência”, diz Éder, que desde a faculdade passou à margem das tendências dominantes na arte conceitual contemporânea, buscando nas tintas e na representação fiel da realidade seu caminho.

O leque de cores limitado, encarado inicialmente como um óbvio problema para quem enxergava a pintura como meio de expressão, obrigou Éder a redefinir os objetivos e adaptar os conceitos que já vinha maturando – com o aconselhamento de figuras importantes na sua carreira, como o artista plástico, professor e conselheiro Alexandre Sequeira. “Foi a partir do daltonismo que caminhei para o monocromático, que combinou com a predileção por retratar mestiços – já que minha paleta de cores são vários tons de marrom. Comecei a misturar o estudo de pinturas de figuras históricas com a necessidade de retratar as pessoas comuns. Queria pegar um cara da periferia, ampliá-lo e colocar na moldura. Desenvolvi a partir de então um trabalho mais consciente de pesquisa pela identidade cultural dessas pessoas e depois fui acrescentando novas cores ao meu trabalho: o verde, o azul, o vermelho.”

O processo de busca pelas referências adequadas às suas pretensões encaminhou Éder ao trabalho do paulista Alex Flemming. Um dos artistas visuais mais conceituados do país, Flemming parte, em muitas de suas obras, da imagem do corpo humano para criticar os vícios da sociedade contemporânea – como na série “Sumaré”, de 1998, que causou impacto particular sobre as ideias de Éder. Era esse o caminho. Já com uma visão mais bem estruturada do que serviria de base para sua produção – e somando outras referências do mundo tanto das Artes Visuais como da Sociologia -, o paraense não demorou muito a perceber que as personagens que combinavam com suas ideias (negros, mestiços, caboclos, excluídos em geral) estavam curiosamente escondidas, de forma quase anônima, nas páginas dos jornais de grande circulação de Belém. Para ser mais exato, nos cadernos policiais.

“Comecei a passar aquelas pessoas para a tela e redimensionar as imagens, torná-las maiores, com a intenção de dar importância àquela figura que está ali como uma mera nota de jornal, mas que é um indivíduo, com uma história, e que representa, no final das contas, toda uma classe. Queria pegar aquela imagem pequena e transformá-la em outra coisa, chamar a atenção para estas questões.” Foi preciso algumas poucas exposições coletivas e uma única individual (“Ser do que é anônimo”, no Instituto de Artes do Pará) para que Éder chegasse à conclusão que a rua, espaço por natureza consagrado a todos, era o mais adequado à mensagem que pretendia transmitir com suas reproduções. Deste então, a intervenção urbana em muros e espaços públicos espalhados pela cidade foi a maneira encontrada pelo timboteuense para devolver à comunidade as imagens, agora recontextualizadas, de cidadãos em situações-limite, na dupla condição de algozes e vítimas.

“Meu trabalho não tem grandes pretensões a não ser fazer pensar: por que ele e não eu? Por que aquelas páginas só têm esse e não aquele tipo de pessoa? Se folheares jornais diariamente, vais pensar que são as mesmas figuras sempre, porque elas são muito parecidas e pertencem todas a um grupo étnico e social bem específico. Compreender isso é compreender o todo”, enfatiza. Enfiado mais recentemente na leitura de Milton Santos, Susan Sontag e Paulo Freire, Éder, que segue em busca de respostas para suas inquietações particulares sobre as possibilidades da arte como agente de transformação, acredita que ainda levará um tempo – a vida inteira – para chegar ao ponto de excelência que almeja. Enquanto isso, tenta. Há não muito tempo estava no Facebook pedindo muros a quem quisesse ajudá-lo na autoimposta missão de emprestar outro ponto de vista sobre aquele homem apagado, ali ao lado. “A minha realidade é essa. Socialmente estou no mesmo nível que as pessoas que retrato. Participei desse êxodo do interior para a cidade como muitos deles, cresci e moro na periferia. Minha posição como artista não é superior, mas sim de solidariedade.”

Trabalhos

“Entre Lugares” – Museu Casa das Onze Janelas (2012).
“Amazônia, lugar de Experiências” – Museu da UFPA (2012).
“Círio nosso de cada dia” – Galeria Theodoro Braga (2012).
“Amazônia, Ciclos de modernidade” – CCBB/RJ e CCBB/ Brasília (2012).
“O Triunfo do Contemporâneo” – MAC/RS (2012).
“Amazônia, a Arte” – Palácio das Artes – Belo Horizonte – MG (2010) e Museu Vale – Vitória – ES. (2010).
“Salão Arte Pará” – Fundação ORM/ MHEP – 2007 e 2011, prêmio aquisição em 2006 e 2º Grande Prêmio em 2007.
“Prêmio SIM” – Exposição coletiva Corporaturas (2008).
Mostra “Contiguidades: dos anos 1970 aos anos 2000” – MHEP (2008).

* Publicado originalmente na Revista Gotaz #3. Aqui o link para a edição completa.