Entre utilidade e fruição a gravura, em suas diversas técnicas, segue nos ensinando e encantando

Talvez jamais saibamos ao certo o verdadeiro propósito/significado da arte rupestre, mas a sobrevivência de alguns sítios nos permitiu inferir, entre outras coisas, que a representação dos mundos interior e exterior é certamente tão antiga quanto a própria humanidade. Pinturas e gravuras pré-históricas não indicam apenas nossa necessidade de expressão, são a prova de que uma outra figura muito importante também existe desde sempre: o expectador. Às vezes gosto de pensar que as paredes serviam como grandes blocos de notas onde cada descoberta, cada aprendizado era registrado, a maneira primeira, pelo menos visualmente falando, de produzir e transmitir conhecimento.

Em todo caso, não podemos esquecer que essas imagens nas paredes foi o que ficou. Por características peculiares elas foram preservadas, talvez nossos ancestrais longínquos tenham percebido que essas informações ficariam mais bem guardadas lá, no abrigo de grutas e cavernas, mas muita coisa certamente perdeu-se no caminho. Um dos motivos pelos quais eu tendo a crer nesse caráter utilitário da imagem como sendo o primeiro – veremos mais adiante que está longe de ser o último – é muito simples: sobrevivência. Tentativas e erros que precisavam ser passados para frente de modo a garantir a prevalência das próximas gerações e assim o é até os dias atuais. A tecnologia evoluiu, mas a essência continua a mesma: permanecer, pelo menos enquanto espécie já que a morte individual continua inevitável.

Das grutas até a invenção do papel e da escrita, mas ainda não era suficiente, seria necessário criar uma técnica onde fosse possível criar cópias de maneira mais ágil do que escrever uma a uma e ainda correndo-se o risco de errar. Multiplicação: essa é a base daquilo que ficou conhecido como gravura. Cria-se uma matriz e a partir dela as cópias são feitas, e as várias técnicas de gravura são nomeadas de acordo com o material utilizado para se produzir essa matriz.

De acordo com os registros existentes, as primeiras matrizes foram feitas de madeira, e a essa técnica dá-se o nome de xilografia (xilogravura é o nome do produto final) e foi desenvolvida na China, onde já era utilizada desde o séc. VI. É um processo relevográfico, uma espécie de carimbo de madeira, o desenho é entalhado e as partes altas recebem a tinta, o restante é o branco do papel. O tipo de xilo pode variar de acordo com o corte de madeira utilizado. A xilografia a fio utiliza a madeira cortada na longitudinal (no sentido da copa para raiz) já a de topo é o corte na transversal, originando um disco de madeira. Cada uma apresenta resultados diferentes, isso porque as fibras interferem tanto no processo de gravação quanto no aspecto final da gravura.

Cepo - série mercado de peixe - oswaldo goeldi
Cepo – série mercado de peixe – Oswaldo Goeldi – xilogravura

Essa técnica veio para o ocidente e foi muito utilizada durante a Idade Média. Mas a evolução seguiu seu caminho. Com o desenvolvimento da metalurgia e da ourivesaria e a necessidade de se fazer tiragens maiores, não demorou muito para a produção de matrizes ser feita em metal, mais resistentes e que permitiam um ajuste mais fino do desenho, logo o emprego mais utilitário passou da xilo para o metal.

Mas as novidades não pararam por aí, o desenvolvimento da química também promoveu grandes avanços nas técnicas de gravura. A corrosão química controlada (calcografia) também passou a ser utilizada nas gravações das matrizes em metal. O desenvolvimento de novos produtos trouxe a linóleografia, muito parecida com a xilografia, o desenho é recortado em linóleo, uma espécie de borracha feita a partir de óleo de linhaça, juta e cortiça, produto muito usado no século XIX para se fazer pisos e “passadeiras”. Sendo mais maleável que a madeira, permitia um corte mais “doce”.

Salvador Dalí - gravura em metal
Salvador Dalí – gravura em metal

Foi procurando um método mais econômico para imprimir seus textos e partituras que o jovem dramaturgo alemão Alois Senefelder, em aproximadamente 1796, desenvolveu a litografia. Apoiando-se em estudos que já teorizavam a utilização da pedra como matriz, Senefelder resolveu a questão da impressão aplicando o princípio de repulsão entre água e óleo. Método planográfico, a lito foi largamente utilizada na imprensa e para a impressão de diversos materiais e documentos, além de representar uma nova possibilidade para artistas.

Matriz de pedra calcária - Litografia
Matriz de pedra calcária – Litografia
Renina Katz - Litogravura
Maio – Renina Katz – Litogravura, 70x50cm – Galeria de Gravura

Antes de entrar na serigrafia é importante relacionar o surgimento das novas técnicas como resposta a uma necessidade, o seu caráter utilitário que não impede a sua aplicação na arte, muito pelo contrário, cada novidade é prontamente absorvida e representa mais uma possibilidade para artistas. É preciso destacar também que as técnicas não desaparecem por completo, por mais que elas percam sua aplicabilidade industrial é justamente a sua prevalência nas artes que asseguram a continuidade da sua existência.

Resumo das técnicas de gravura
Nas gravuras em relevo a matriz é gravada e as partes altas recebem a tinta, as partes baixas são o branco do papel. Nas gravuras a entalhe a tinta penetra no sulco, as áreas altas representam o branco do papel. Na litografia a pedra não é gravada, é a repulsão água e óleo (desenho feito com material gorduroso/tinta) que proporciona a impressão.

A serigrafia é um processo de impressão permeográfico. Ela segue o princípio do estêncil: a tela de poliéster, esticada em um bastidor, recebe um tratamento fotoquímico que determinará as áreas impermeáveis e, nas demais áreas, a tinta atravessa a tela, com a ajuda de um rodo, e o papel é impresso. Cada cor requer uma tela, para isso são produzidos os fotolitos, um para cada cor, e a partir deles uma máscara é criada em cada tela.

Uma emulsão fotossensível é aplicada na tela, uma vez seca, coloca-se o fotolito sobre a tela e o conjunto é levado até uma mesa de luz. As áreas escuras no fotolito bloqueiam a luz, nessas áreas a tinta atravessará. As áreas que recebem luz ficam impermeáveis, são as áreas de vazio. É um processo análogo ao de ampliação de fotografias analógicas. O papel fotográfico (fotossensível) é posicionado no ampliador, o negativo é o fotolito, as áreas escuras bloqueiam a luz e o papel não é “queimado”, as áreas claras do negativo correspondem às áreas onde o papel é queimado. Uma a uma as camadas de cores, entrecortadas por ausências, são depositadas sobre o papel e ao final temos uma gravura feita em serigrafia.

Mas não foi sempre assim. A serigrafia é uma técnica bastante antiga e devido à sua versatilidade e baixo custo sempre esteve relacionada aos usos industriais/comerciais. Foi a partir do movimento da Arte Pop, com a adesão de Andy Warhol à técnica, que a serigrafia passou a ser vista como possibilidade também artística.

Leia também: Serigrafia e arte pop: a incrível máquina de produzir arte

Henri Matisse - Le cirque [da série] Jazz
Henri Matisse – Le cirque [da série] Jazz – 1947 – Serigrafia, 36,8×54,7cm

Conforme nos explica Mayra Laudanna “gravura não é desenho, gravura não é transposição de desenho, gravura é uma linguagem”, isso significa que a gravura é o código especificamente escolhido pela/o artista para transmitir a sua mensagem, e mais, a escolha envolve ainda qual das técnicas utilizar, de qual especificidade eu preciso para materializar a minha ideia. A gravura não é meio-termo, ela é inteira, ela é completa. Olhar para uma gravura é algo, sem dúvidas, prazeroso. Como seres com tendência a dualidade: claro/escuro, certo/errado, dia/noite, cheio/vazio e etc., talvez reconheçamos, de modo inconsciente, na gravura o duo tinta/não-tinta e isso nos agrade. E esse encanto provocado por uma estampa deve-se em grande medida às escolhas feitas cuidadosamente pelos artistas: o que fica na minha matriz, o que sai?

Das cavernas e grutas à realidade aumentada, a produção e reprodução das imagens jamais cessou de evoluir e ainda que a sua intenção primeira possa ter sido utilitária isso não significa, absolutamente, que ela tenha um valor menor, muito pelo contrário. Os vários empregos, empréstimos e desenvolvimentos só reforçam a importância primordial daquele grande bloco de notas ancestral. Foi graças à nossa mania de registrar que chegamos onde estamos e pudemos dar um sem número de novas atribuições à imagem. Utilidade e fruição, tanto para artistas quanto para expectadores, a arte segue nos ensinando e encantando.

Referências bibliográficas:

COSTELLA, Antonio F. Introdução à gravura e à sua história. Campos do Jordão-SP: Editora Mantiqueira, 2006

Youtube:

GEORGE KORNIS – Gravura: passado, presente e futuro

MAYRA LAUDANNA – Ver é quebrar conceitos firmados

RUBEM GRILO – A Xilogravura como projeto modernista brasileiro