Sobre a artista
Fraturar-se para o encontro

O trabalho da artista Virginia de Medeiros converge de estratégias documentais, para ir além do testemunho, questionando os limites entre realidade e ficção. A artista lida com três pressupostos comuns aos campos da arte e do documentário: o deslocamento, a participação e a fabulação. Adaptando imagens documentais para usos subjetivos, pessoais e conceituais, propiciando a revisão dos modos de leitura e representação da realidade e da alteridade. De Medeiros atua na área de arte e tecnologia com ênfase em vídeo-instalação e audiovisual, sempre buscando convergir linguagens das artes e das mídias, expandido as concepções estéticas e tecnológicas afim de gerar novas possibilidades expressivas.
“Sergio e Simone” (2009/2014), obra que participa da 31ª Bienal de São Paulo (2014) e premiada no 18º Festival de Arte Contemporânea Videobrasil com o Prêmio de Residência ICCo retrata Simone, uma travesti, que morava numa casa arruinada na Ladeira da Montanha, antiga ligação entre a Cidade Alta e Baixa. Como a maioria dos habitantes desta área, uma das mais degradadas da cidade de Salvador, BA, Simone era usuária de drogas e, cerca de um mês depois da primeira filmagem, ele entra em convulsão por causa de uma overdose de crack, seguida de um delírio místico, no qual acredita ter se encontrado com Deus, um encontro que a teria feito escapar da morte. A partir desse episódio Simone abandona a sua condição de travesti, volta para casa dos pais, retoma o seu nome de batismo Sérgio e, num surto de fanatismo, se considera uma das últimas pessoas envidas por Deus para salvar a humanidade.
Virginia de Medeiros nasceu em 1973, em Feira de Santana, Bahia. Vive e trabalha em São Paulo. Em 2006, teve a obra “Studio Butterfly” selecionada pelo Programa Rumos Itaú Cultural e para a 27ª Bienal de São Paulo, SP. Em 2009, participou da residência artística “International Women for Peace Conference”, em Dili, Timor-Leste, e em 2007, da Residência Artística no Centro de Artes La Chambre Blanche, em Québec, Canadá.
Recebeu o prêmio Rede Nacional Funarte Artes Visuais 2009 com a vídeo instalação “Fala dos Confins”, que em 2013 foi adquirida pelo Centro Cultural São Paulo, SP. Em 2010 participou da 2ª Trienal de Luanda “Geografias Emocionais, Arte e Afectos”, Luanda, Angola e em 2011, do 32º Panorama de Arte Brasileira, MAM São Paulo, SP. Em 2012, ganhou a Bolsa Funarte Estímulo à Produção em Artes Visuais com o projeto “Jardim das Torturas” e foi premiada no 18º Festival de Arte Contemporânea Videobrasil com o Prêmio de Residência ICCo – Instituto de Cultura Contemporânea no Residency Unlimited – Nova York, EUA.
Mostras coletivas recentes incluem: “Cães Sem Plumas” (Museu de Arte Aloísio Magalhães – MAMAM, Recife, PE, 2014); “Missão” (Centro Cultural São Paulo, São Paulo, SP, 2014); “Cães Sem Plumas (prólogo)” (Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP, 2013); Projeto “Novas Aquisições MAC CE- Dos percursos e das poesias” (Dragão do Mar, Fortaleza, PE, 2013); “Coletiva Instituto Cervantes” (Instituto Cervantes, São Paulo, SP, 2012); “Metrô de Superfície” (Paço das Artes, São Paulo, SP, 2012); e “Vídeo Guerrilha” (Intervenção Urbana Augusta, São Paulo, SP, 2011).


A vida cotidiana é constituída por uma armadura de condutas, marcada por uma barreira imaginária que separa indivíduos, os quais tem sua própria consciência ignorada e encoberta por identidades-estigmas, imagens estereotipadas por meio das quais são representados. Acredito que a ordem imperativa que nos separa de outros modos de existência é fictícia, a necessidade de desobedecê-la e atravessar fronteiras para aventurar-me num universo diferente do lugar no qual estou, tem motivado minha prática artística: conhecer outros códigos sociais e deixar-me afetar por eles, pelo prazer de estranhar-me e deslocar-me de meus próprios limites foi a matéria primordial do meu processos criativos.
Vim de uma família sertaneja, pais paraibanos, até os 17 anos morei num sítio na zona rural de Feira de Santana, interior da Bahia. A relação com a natureza me levou para arte muito cedo, sem que eu mesma soubesse, ela me apresentou uma diversidade de experiências que me constituem e se atualizam na minha produção artística. Compreender a rua como um laboratório possante de criação, foi o primeiro passo para ser atravessada por outros modos de existência. A rua me trouxe de volta a natureza, a imprevisível novidade que parece desenrolar-se do universo. O ato de andar, observar lugares, pessoas, situações e a vontade de me infiltrar num determinado cotidiano – onde os código e regras sociais, valores morais são outros, diferentes do lugar onde estou –, e experimentar as conexões e desconexões que estes universos vão provocar em mim, passou a motivar meu processo criativo. Neste tipo de convívio cabe contradições, tensões, desafios, desconstruções, desestabilizações – mutações. O Outro não é apenas o dessemelhante – o estrangeiro, o marginal, o excluído – é também uma sensação de incompletude que nos mantém em suspenso, como inacabados, na espera de nós mesmos. Um encontro que requer tempo, cumplicidade e uma vontade de aproximar o que nos parece distante. Seguindo Michel de Certeau, acredito existir cantos de sombras e astúcias, no império das evidências da cidade, só não percebe quem está na distância de uma classe que se “distingue” do resto, e a observação só capta a relação entre o que ela quer produzir e o que lhe é resistente.
O meu trabalho é munido de um phatos antropológico, busco conhecer um mundo diverso do meu, me considero uma artista autoetnográfica (1). A diversidade humana talvez seja uma das questões mais difíceis de ser compreendidas, nesta investida corro o risco de acentuar para o espectador o exotismo, o estigma ou a própria descriminação. Este é o maior desafio que enfrento ao transponho a experiência vivida para o espaço expositivo. Acredito que sou protegida pelo estado afetivo que me lança em cada um destes universos, provocando uma espécie de cegueira que distorce o real – ao invés do testemunho a fábula. O momento da fabulação é esse, quando a diferença entre aquilo que é real e aquilo que é imaginado se torna indiscernível, quando por esse processo o individuo se constitui como um sujeito da cena e não como um mero objeto que é observado: criar um mundo, nele crê e se projetar.“O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um mostro.” (DELEUZE). Abraço este conceito deleuziano não como uma síntese da minha prática, mas como lembranças desprendidas da pele, a casca de uma velha árvore que encobrem o oco da profundidade. Foi a boca sertaneja do meu pai que, introduziu-me a lenda e o mito, irrigou o meu sertão. Conjurando em suas histórias cotidianas mais ordinárias, insígnias e fabulosas sagas. Herói de suas próprias histórias – em todos “causos” contados uma esperteza dita, um ensinamento aprendido, um desafio vencido, uma sorte perene no ar. Um homem que se fez – lavrador, caminheiro, dono de um cinema ambulante na década de 50, mecânico e comerciante. Cresci escutando suas histórias, as mesma histórias movidas pela força do desejo ganhavam novos contornos e se transformavam em outras. Sim, “conhecer não é buscar a verdade sobre algo, sobre nos mesmos, desvendar ou reproduzir verdades preexistentes no mundo. Mas criar suas próprias verdades, constituir sempre novos mundos, novas forma de existência singulares, fazer escolhas assumindo o risco de engano.” (2)
O primeiro universo que adentrei foi o das travestis, durante aproximadamente um ano e meio, aluguei uma pequena sala no Sulacap, edifício comercial do centro de Salvador. Este espaço foi pensado como um ponto de encontro com as travestis, instalado em uma área onde elas vivem e trabalham. Os elementos utilizados para ambientação do espaço se basearam na memória visual que guardei dos quartos das travestis que habitaram a pensão de Rosana – a primeira travesti que conheci e que me fez adentrar nesse universo. Dessa imersão resulta a obra Studio Buttrefly (2003/2005). No estúdio as travestis me traziam suas fotos antigas e recentes, junto a familiares, amigos, amores, e, sentadas na “poltrona dos afetos”, me contavam algumas histórias de vida, que eu registrava em vídeo. Em troca, fazia com elas um ensaio fotográfico, e ao final lhes dava um book. Toda esta vivência foi registrada numa espécie de diário de bordo, depois transformada num livreto de contos.
Do alto do edifício Sulacap, via a Ladeira da Montanha, lugar que a muito me acariciava com as pontas dos dedos carcomidos pelo abandono e me arranhava com unhas sujas de detrito de tempo. Área degradada da velha Salvador. Abrigo de decadentes mundanas, seus filhos, ladrões “Aqueles cuja violência é o clima habitual são simples diante de si mesmos… “Jean Genet. Desejei descer a Montanha e entrar o opaco que meus sentidos não podiam alcançar do alto do Sulacap, conheci Simone uma travesti. Quando conheci Simone, uma travesti, ela Morava há pouco tempo com seu companheiro numa casa arruinada na Ladeira da Montanha. Como a maioria dos, Simone era usuária de drogas, mas também cuidava espontaneamente de uma fonte que havia ali, a Fonte da Misericórdia, que tratava como um santuário para culto de seus orixás. Cerca de um mês depois da primeira filmagem, Simone entrou em convulsão por causa de uma overdose de crack, seguida de um delírio místico, no qual acredita ter se encontrado com Deus, um encontro que a teria feito escapar da morte. A partir desse episódio Simone abandona a sua condição de travesti, volta para casa dos pais, retoma o seu nome de batismo Sérgio e, num surto de fanatismo, se considera uma das últimas pessoas envidas por Deus para salvar a humanidade. Esta história origina o vídeo Sergio e Simone (2008/2009).
No projeto Fábula do Olhar (2013), adentro no universo dos moradores de rua. O desejo de retrata-los, veio junto a questões relacionadas ao uso generalizado e banalizado de imagens proporcionado pela diversificação de dispositivos que as utilizam e pela popularização dos diversos tipos de câmera. A imagem destituída de qualquer valor, seja político ou estético, transforma-se em pura informação. A sensação é que tal extensão e intensidade da difusão das imagens gerou no público uma espécie de indiferença, que acaba tornando todas as imagens equivalentes entre si. Como será possível restituir o estatuto excepcional de uma imagem que põe fim ao mundo e que, não sendo sua expressão é, ao mesmo tempo, sua emanação, uma forma de intuição vinda de outros lugares? A fascinação provocada por algumas fotos antigas me abre uma pista. O encantamento se deve, às vezes, ao fato de que não se saber de onde vem aquele registro; elas vem de um universo sem vestígios ou de um tempo outro – cria um limiar sugestivo à visão, um recorte quimérico da percepção. De todas as fotografias da minha infância, uma em particular punha em ação este jogo inelutável entre o real e a imaginação, criando uma estranha cisão no meu olhar. A foto colorida à mão do meu 10 ano de vida inventava uma cor pálida para o meu vestido vermelho-sangue, amarelava os pilares da minha casa, tingia de azul desbotado a cadeira de balaço branca e sob tons de cinza dos meus cabelos uma laço rubi fulgurava, despertando uma estranha magia diante dos meus olhos, uma latência no real. Tal recordação provocou a ideia de resgatar o ofício da fotopintura, nesta experiência artística, tradição nordestina quase extinta e que tem uma característica muito especifica: retocar a imagem com tinta acrescentando acessórios – como ternos, jóias, maquiagem, vestidos –, estes novos detalhes emprestavam certo prestígio ao personagem. Decidi cruzar esta técnica a retratos de personagens que vivem na rua, onde a miséria material é confundida com a miséria subjetiva e existencial, buscando uma forma retirar esta imagem do sistema de informação, fazendo com que ela se abra ao mundo de uma forma que não conhecíamos de antemão, reiterando-a através do circuito da arte. No período de um mês e meio instalei um estúdio fotográfico em dois refeitórios destinados a moradores de rua na cidade de Fortaleza: o Refeitório São Vicente de Paulo e a Casa da Sopa. Retratei 21 moradores de rua numa série fotográfica em preto-e-branco, colheu depoimentos em vídeo sobre a história pessoal de cada um dos colaboradores e fez uma pergunta-chave que direciona e identifica a natureza da obra: Como você gostaria de se ver ou ser visto pela sociedade? Esta questão abre o campo de subjetividade dos indivíduos retratado que, fabulando sua condição, se fazem personagem da mostra “Fábula do Olhar”. O artista cearense, Mestre Júlio dos Santos, através da técnica da fotopintura, coloriu os retratos em preto-e-branco interferindo nas imagens de acordo com as revelações dos moradores de rua. Como resultado teremos uma imagem-fabulosa que punha em ação este jogo inelutável entre o real e a imaginação.
Acredito que registrar o que está imperceptível aos olhos de muitos, como um indício vital do poder de alteridade, é também função da arte. É nela que, ao propiciar o reconhecimento de maneiras distintas de ver e de se colocar no mundo, configurando um traço distintivo da experiência humana, descobrimos uma seara aberta às possibilidades de encontros e à promoção de diálogos. – Virginia Medeiros
(1) Segundo o conceito de Daniela Beccaccia Verdiani, na autoetnografia o mito do self é afrontado pela cacofonia de múltiplas vozes sem síntese; a descrição do outro como objeto é substituído pelo diálogo interminável e tenso entre subjetividades distintas e a escrita, de modo geral, vista como reprodução transparente de realidades exteriores, é questionada a favor de seu estatuto performático de evento.
(2) Gille Deleuze.
Representada pela Galeria Nara Roesler.